A dor é um dos maiores medos da humanidade (provavelmente de todos os seres vivos). Muitas vezes tomamos atitudes (ou deixamos de tomá-las) com medo de sentir dor. Deixamos de tentar, de olhar mais fundo, de reagir, de se impor ou de respeitar a opinião alheia por medo da dor.
Esta semana escrevi um post falando sobre o meu estado de espírito, comentando vagamente que meu fim de semana tinha sido doloroso. Foquei-me em falar sobre a importância de respeitarmos nosso estado de espírito e sermos coerentes com o nosso mundo interno. Mas esse estado de espírito despertou mais reflexões profundas que quero compartilhar aqui.
Então vou começar contextualizando o que aconteceu: no último final de semana tive que sacrificar a minha cachorra de dezessete anos, após um súbito AVC que lhe retirou praticamente todos os movimentos. Foi profundamente doloroso e influenciou minha energia até agora.
Estou resolvendo isso da melhor forma que conheço: refletindo e escrevendo.
E pensando sobre tudo que estou sentindo em contraponto aos fatos que ocorreram, acabei por ter alguns insights sobre porque dói tanto perder.
Sempre elas, as expectativas.
Primeiro, vêm as expectativas. Tudo o que podia ter sido, mas obviamente não foi. Tudo o que você poderia ou deveria ter feito, mas não fez seja lá por qual motivo. O que deveria ter falado, mas se calou.
Elas rondam tanto os últimos eventos envolvendo o objeto, situação ou ser perdido como os fatos ocorridos há muito tempo atrás. Formam um conjunto de telas holográficas com imagens de fatos que jamais se manifestarão, que flutuam na sua mente como várias TVs ligadas em uma loja de departamentos. Criam ruído, angústia, culpa, remorso, tristeza e lágrimas.
Essas expectativas são como roteiros que nunca foram filmados, sabe-se lá porquê, e que insistimos em achar que eram dignos de Oscar. Que ao não realizarmos aquelas expectativas perdemos momentos preciosos, grandes epifanias, situações transcendentais.
Por favor senhor juiz, pare agora!
Na verdade, a gente não tem nenhuma certeza de que se tivéssemos atendido essas expectativas nossa vida teria virado filme. Existe a possibilidade de que se a gente tivesse feito diferente a nossa vida não valeria nem um discurso de paraninfo. Temos que compreender que a gente sempre faz o que pode dentro do entendimento que possui no momento. Sempre ficamos nos torturando com a ideia que dava para fazer assim ou assado, mas na prática isso não adianta nada, como estamos cansados de saber.
Um monge estava passando por uma aldeia quando viu uma jovem com dificuldade para atravessar o rio, fundo e caudaloso. Oferecendo-se para ajudá-la, pegou-a no colo e atravessou o rio. Despediu-se e seguiu seu rumo.
Quando retornou à aldeia no fim da tarde, encontrou o falatório instalado. Todos comentavam o fato do monge, que não deveria ter contato com mulheres, ter pego a moça no colo. As pessoas estavam indignadas e comentavam entre si a descabida atitude.
Quando foram interpelar o monge sobre o ocorrido, este respondeu:
– Eu carreguei a jovem por alguns minutos, atravessei o rio e continuei meu dia. Vocês, no entanto, em suas mentes estão o dia inteiro carregando essa moça, fazendo até coisas piores com ela!
Moral da história: não nos mantemos presentes de corpo e alma nos momentos e depois viajamos na novela da cabeça. Fica aquela cena passando o dia inteiro, sem parar. Além do desgaste mental que isso causa, temos um tremendo desgaste físico. Tendo em vista que a nossa mente não distingue o que é real e o que é imaginário, quando ficamos repassando a cena vezes e vezes somos bombardeados com reações fisiológicas às imagens como se estivessem acontecendo naquele instante (imagina então a confusão quando temos várias telas tocando ao mesmo tempo).
Resumindo, por mais que eu fique pensando que poderia ter sido diferente, que os sinais de problemas neurológicos dela poderiam ter outro desfecho, que lembre dos momentos em que não fiz o que eu acho que deveria ter feito, me cobrando por não dar atenção ou cuidados em algumas situações, nada vai mudar o que aconteceu. E, sinceramente, fico feliz pelas atitudes que tomei nos últimos momentos, inclusive por ter acompanhado a passagem dela até o final após a injeção letal.
E ainda tem mais: os gremlins
Percebi mais algo nesse processo de dor que demorei um pouco para desvendar. Não entendia porque sentia um turbilhão de emoções e uma dor tão profunda que ultrapassava a minha relação com a minha cachorra. E entendi que o processo possui algo mais complicado e sutil .
Todos fugimos da dor. Mesmo hoje, quando temos tantos textos falando sobre o luto e a necessidade de vivê-lo em sua totalidade, ainda processamos muito mal nossas perdas em todos os âmbitos. Claro que quando falamos de pessoas, isso acaba ficando mais óbvio, mas há outros lutos. Quando perdemos um emprego, uma oportunidade, um amigo (não por morte, mas pela vida mesmo), um recurso (emocional, mental ou financeiro), enfim, quando perdemos.
Temos dificuldade de nos empenharmos na elaboração do significado das perdas, principalmente daquelas que não são relativas à morte. Geralmente, empurramos para baixo do tapete, não honramos nosso estado de espírito, nos damos dois tapas na cara e mandamos parar de histeria.
E o que acontece com a dor dessa perda?
Ela vai para um cantinho, uma gavetinha, uma fresta da nossa mente. E fica lá esperando até você encará-la, cuidar dela, entender o que aconteceu, aceitar sua vulnerabilidade e acolher esse sentimento.
Agora, pensa comigo: a gente faz isso sempre. Ignoramos inúmeras vezes nossas perdas para “sermos fortes”. Resultado: temos uma multidão de pequenas dores escondidas nas frestas da nossa mente feito gremlins. E elas saem todas de seus cantinhos quando passamos por uma nova perda, na esperança de finalmente serem olhadas, acolhidas e resolvidas.
Portanto, também dói tanto perder porque há um turbilhão de todas as suas perdas mal elaboradas. Elas afloram pedindo apoio, mostrando que estão lá, que um dia você vai ter que aceitar que é vulnerável, falho, desligado, impotente, e todas as demais características que você sentiu quando perdeu daquela vez.
E o que fazer? Respirar fundo, pegar uma caixa de lenços de papel, sentar em um canto tranquilo e conversar para cada uma dessas dores. Agradecer por ela estar ali, dizer que aceita que ela é parte da sua vida. Pedir que ela lhe conte qual a lição que ela traz. Abraçá-la e permitir que ela ocupe o seu lugar dentro do seu mundo interno. Chorar todas as águas internas que querem transbordar. Se embolar em si mesmo, oferecendo apoio e carinho ao nosso estado emocional. Aceitar que somos a somatória de tudo que aconteceu com a gente, bom ou ruim, bonito ou feio, divulgável ou execrável.
Mas isso vai doer, Elisa! Deixa eu contar uma coisa: já tá doendo, criatura! Encarar ou não as suas dores não muda o fato de que elas estão ali latejando, quem sabe até virando uma das suas sombras. Encarar, na verdade, possibilita a você começar um processo de cura e cicatrização ao ver qual o recurso (qualidade/aprendizado/ferramenta) que essa dor trouxe para você.
Neste momento eu só posso desejar a você (e a mim mesma) coragem, auto-empatia, compaixão e sabedoria para encarar essa lição. Mas confio profundamente na nossa capacidade de transmutar e renascer, qualidades tão humanas e que nos fizeram ir tão longe!
Que o trecho íngreme da jornada seja transposto e que encontremos uma linda e plana pradaria (pelo menos até a próxima curva)! :)
Gratidão por cruzar meu caminho!
Desbravando esse caminho:
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Somos responsáveis pelos nossos sentimentos, mas não somos don@s deles – Neste texto a Carolina Nalon explora bem a forma como sentimentos e necessidades afloram e o que fazer com isso.
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Como soltar o passado e retornar ao amor – Ótimo passo-a-passo para superar dores do passado e recomeçar.
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Como se levantar, sempre que você cair – Mais orientações para superar nossas falhas e perdas.